Cerrado Infinito é um processo artístico que recria, pela primeira vez, um campo de cerrado dentro de uma área urbana. Um refúgio para plantas aniquiladas ao longo do desenvolvimento da cidade de São Paulo.
Resgatadas a partir do mapeamento de espécimes sobreviventes, na forma de mudas e sementes, elas são plantadas em agrupamentos até formarem uma comunidade vegetal resiliente que, mais do que ser paisagem, reivindica a ecologia de um território anterior à ocupação colonial.
A tentativa é desprogramar os territórios da cidade e devolver a terra a um marco zero — cultivando o ócio, o baldio e o biodiverso. Misturam-se plantas, animais e pessoas no gesto de recuperar a memória do lugar habitado e invocar o paraíso paulistano perdido, com sua natureza riquíssima: delicados campos de cerrado, várzeas pantaneiras e a exuberante floresta atlântica.
Nesse pequeno recomeço, todos são convocados a inverter a estética vigente, valorizando uma flora historicamente desconsiderada, sistematicamente destruída e ainda hoje vista como "mato do atraso."
Se esta cidade é o modelo de desenvolvimento para o resto do país, o Cerrado Infinito não deixa de ser um anti-monumento e uma provocação incessante à nossa inabilidade de evitar a destruição dos nossos ambientes naturais — que desaparecem junto com nossa identidade cultural.

“Vi terras da minha terra. Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado no meu olhar fatigado. Foram terras que inventei.”
Trecho do poema "Testamento" de Manuel Bandeira ( 1943 )
Territórios do Cerrado Infinito
01-Cerrado Infinito das nascentes do Água Preta - Praça Homero Silva, (Praça da Nascente) Rua André Casado, travessa da Avenida Pompéia 2140, Bairro da Pompéia, Zona Oeste. Iniciado em 13 de Junho de 2015. área atual estimada de 2.000m2.
02- Cerrado Infinito da Escola Estadual Jardim das Camélias - Rua, Bairro Jardim das Camélias, Zona Leste. Iniciado em 2015, desativado em 2017.
03 -Cerrado Infinito da Borda do Caaguaçu - Alameda Jaú 1742, Jardim Paulista, Zona Oeste, São Paulo, 01420-006. Iniciado em 2022.
04- Cerrado Infinito Casa das Caldeiras - Avenida Matarazzo, Barra Funda, Zona Oeste, São Paulo, 01156 Iniciado em 2022,desativado em 2024.
O cerrado
Quando o padre José de Anchieta subiu a serra do Mar a partir de São Vicente, encontrou uma paisagem diversa da densa floresta tropical. No planalto paulista o clima ameno e os campos arbustivos traziam um conforto familiar, sugerindo aspectos da vegetação mediterrânea.
Os Campos de Piratininga eram um mar de colinas que alternavam bosques de Mata Atlântica, araucárias e várzeas alagadas, com extensos campos cerrados. Esse contraste com a Mata Atlântica foi determinante para a escolha dos primeiros povoados pelos colonizadores portugueses, como atestam os nomes Vila de São Paulo de Piratininga, Santo André da Borda do Campo, São Bernardo do Campo ou Santo Amaro da Borda do Campo. Essa paisagem campestre deu espaço primeiramente, para o gado e o trigo, depois para os ciclos da cana de açúcar e do café que, por sua vez, desapareceram sob a intensa industrialização e desenvolvimento urbano.
Esquecido pela cartografia típica que define o bioma, distante dos livros escolares, o cerrado se tornou inimaginável para a grande maioria dos cidadãos que apontam a Mata Atlântica como a paisagem nativa paulistana. Hoje, soterrado numa amnésia profunda, o campo continua - só que agora rupestre, com cânions de concreto e asfalto. Sua vegetação, composta de 96% de plantas estrangeiras, ainda está longe de constituir uma floresta. A cidade é o novo ecossistema, recriado perpetuamente, onde o cerrado como sua antítese é o terreno baldio original. Ocupa um espaço em suspensão que não participa da cidade, sendo entendido apenas como potência de vir a ser alguma coisa.
O infinito
A trilha foi a primeira intervenção do ser humano na paisagem, muito antes dos grafismos pré-históricos. É uma linha que se desenha rasgando a vegetação e o relevo. A necessidade de repetir seu percurso desenvolve, ao longo do tempo, nas suas margens, meios de subsistência, moradia ou negócios, substituindo completamente o território natural pelo território produtivo.
A trilha do “Cerrado Infinito” é um processo reverso que se forma a partir de ações contínuas de descolonização da paisagem vegetal urbana. Ocupa áreas já destinadas a uma função - como praças públicas, gramados, jardins ou locais que tenham espaço a ser transformado - liberando o solo de qualquer função pré-determinada e substituindo a vegetação estrangeira pela nativa, em um processo de descolonização vegetal da paisagem.
Repetido continuamente, o processo desenvolve um percurso ondulante que aproveita o terreno e prolonga o tempo de caminhada ao máximo, como um anti-atalho ou um passeio inútil, sem função de transportar e ganhar tempo. A imersão na vegetação convida ao ócio, a sensibilização e descolamento da espacialidade e tempo cotidiano.
A arte ruderal
Ruderal, do latim ruderis, significa literalmente "entulho", e designa comunidades vegetais adaptadas para se desenvolver em ambientes fortemente alterados e perturbados pela ação humana. As plantas ruderais seguem os passos do homem e estabelecem neles, condições para outras formas vegetais mais exigentes, num processo continuo de sucessão até a completa restauração biológica.
Na arte, comportamento ruderal designa artistas ou trabalhos que se utilizam de espaços institucionais áridos ou terrenos públicos assépticos da cidade, para estabelecer territórios de diversidade biológica e cultural.
Tudo o que acontece no Cerrado Infinito é ruderal.
A descolonização
O espaço público, tomado por ervas daninhas ressignificadas como paisagem natural e histórica da cidade, cria um território livre para novos processos. Na relação com a vegetação, as pessoas são a fauna possível dentro de um ecossistema artístico que atua além da dimensão da natureza, em esferas simbólicas que promovem outra ordem de conexão. Pela trilha se compartilham sementes, mudas de plantas, informações, eventos, idéias, arte, pesquisa e diversão.
O evento DESCOLONIZATION!!! Piquenique Internacional de Decolonização da Paisagem Vegetal Mundial, realizado aleatoriamente, apresenta algumas experiências artísticas desenvolvidas no Cerrado Infinito, por diferentes artistas e pesquisadores, de arte sonora, instalações, dança e performance, além de conversas abertas com convidados.
Os Cerrados Infinitos, desenvolvidos em diferentes locais, constituem fragmentos de uma trilha única, conectada entre si pela imaginação, e a vontade de ser percorrida coletivamente, ignorando a geografia determinada pelo urbanismo, as diferenças sociais e os sistemas de transporte urbanos.

“Os novos poderes tendem a um complexo de atividades humanas que se situam além da utilidade: os tempos disponíveis, os jogos superiores. Contrariamente ao que pensam os funcionalistas, a cultura se encontra lá onde termina o útil.”
Alberts, Armando, Constant, Oudejans, Primeira proclamação da Facção Holandesa da Internacional Situacionista. 1959